novembro 19, 2009

Entrevista: Consciência Negra e Cotas raciais

Entrevista da professora e acadêmica de Direito Maria de Lourdes da Silva sobre 20 de novembro, dia nacional da Consciência Negra. Para ilustrar a entrevista, achei por bem colocar as fortes imagens do artista mexicanos David Alfaro Siqueiros, polêmico, subversor da ordem, pungente, que falam por si só sobre questões étnico-raciais e democracia e que tanto se parece com o sentido da fala da entrevistada

Diacui Pataxó - Professora Maria de Lourdes, estamos lhe entrevistando porque seu trabalho contra racismo e preconceito é reconhecido pela comunidade e principalmente por aqueles que foram seus alunos ao longo dos seus 25 anos de Magistério.

Maria de Lourdes - é verdade, sempre combatemos preconceitos com projetos, eventos e oficinas nas escolas, envolvendo colegas, estudantes e comunidade.

DP - O que a motivou sempre a estar à frente nestas atividades?

MLS como dizia a minha professora de metafísica, a poetisa Valdelice Pinheiro, a INDIGNAÇÃO, só podemos nos sentir vivos se ainda nos indignamos.
Sinto-me incomodada desde a adolescência, quando percebia muitas amigas de pele mais escura serem maltratadas, depois cresci vendo Klu-Klux-Klan, Apartheid, Nelson Mandela preso, li seu livro, assisti Steve Biko - um grito de Liberdade, Sarafina, Zumbi, li a história da escravidão no Brasil, olhei ao meu redor e vi racistas... Não pude me calar mais...

DP O que a senhora pensa a respeito das cotas raciais?

MLS - eu concordo plenamente com cotas raciais, acho que é o mínimo de indenização que o governo pode dar aos negros pelos trezentos e cinquenta anos de escravidão, com a bunda exposta na rua, amarrados no pelourinho, tomando chicotadas em público, herança maldita escrita no DNA de todos nós. Trezentos e cinquenta anos sem casa pra morar, sem chão seu pra lavrar, sem poder aprender a ler, sem ser dono do próprio corpo, geração após geração de meninas e mulheres estupradas por senhores, abusadas sexualmente, vilipendiadas na alma e no que pode haver de mais digno e decente no ser humano, o amor-próprio, a auto-estima! Crianças obrigadas a trabalhar, vidas inteiras comendo restos de migalhas das mesas ou as vísceras rejeitadas dos animais...cotas raciais não são nada diante da história, da diáspora compulsória, da escravidão secular.

DP - Haveriam outras alternativas?

MLS - Claro que sim! Na verdade, se nestes últimos cem anos a escola pública foi frequentada por negros e pobres, por que a cota-racial na Universidade pública é para negros? a cota racial deveria ser para os brancos. Eles estudaram fora da rede pública, nas melhores escolas particulares, nos melhores pré-vestibulares, por que são eles os donos das vagas nas escolas públicas e nós, os negros, o povo, os cotistas? Para sermos discriminados mais uma vez? Para sermos chamados de incompetentes? que não conseguimos passar no vestibular e por isso precisamos de cotas? Os brancos são minoria em nosso país. As cotas devem proteger minorias. As vagas são dos negros que obrigatoriamente alisam os bancos das escolas estaduais e municipais toda a sua vida, mas na hora H, da profissionalização de nível superior...!!!

DP - Essa idéia é bastante polêmica!

MLS - O Brasil precisa de polêmicas. Tudo no Brasil termina em pizza e cerveja, na beira da praia, numa mesa de bar, numa roda de piadas. Não se discute com clamor, não se fala sério, as pessoas não se indignam, não reclamam, não propõem o inusitado! Essa idéia é a descontrução do pensamento considerado dos mais avançados no Brasil por conta de combater o racismo! Após 30 anos de trabalho, dos quais 25 estive no Magistério, resolvi prestar vestibular para Direito e me inscrevi como cotista! Usei o subterfúgio que a lei me concedeu, mas preferia que tivesse sido de outra maneira. Como acadêmica de Direito, cotista, tenho percebido vários colegas na mesma situação destacando-se como os melhores alunos do curso.

DP Então o Ensino Fundamental precisa de mudanças?

MLS Claro que sim. Não de reformas mas de uma revolução. A qualidade do Ensino público e gratuito no Brasil está em cheque. Urge a transdisciplinaridade, a informatização das escolas... aqui em Ilhéus, na Bahia, os computadores chegam e ficam hum ano fechados dentro das salas das diretoras, porque a ordem é que só técnicos da Secretaria de Educação podem vir abrir e eles levam esse tempo para sair da Prefeitura e chegar na escola. A internet não é instalada e os discentes não tem acesso em casa nem na escola. O Cargo Ministério da Educação e Secretaria de Educação tem que ser ocupados por vontade política e não por técnicos e puxa-sacos políticos.

DP- Bem professora, quais suas palavras finais sobre o dia 20 de novembro, dia Nacional da Consciência Negra?

MLS- Digo que sempre fomos ensinados a nos acharmos feios, fedidos, sujos, preguiçosos, desgrenhados, nossa religião virou coisa do diabo - embora Netuno carregue um tridente impune do julgamento dos brancos - nossas vestes são espalhafatosas, nossa bunda é grande, nossos "beiços" são grossos... Mas somos lindos em nossa negritude e mestiçagem, cheiramos a mato e natureza, sempre fomos os que limpamos - gostaria de citar aqui aqui a música que Gilberto Gil compôs em 1984:

O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê

Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza

Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão

É isso: Lembremos sempre da nossa dignidade!


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LIBERTEM CÉSARE BATTISTI

Carta aberta de Cesare Battisti a Lula e ao Povo Brasileiro


CARTA ABERTA
AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR
LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
SUPREMO MAGISTRADO DA NAÇÃO BRASILEIRA
AO POVO BRASILEIRO
"Trinta anos mudam muitas coisas na vida dos homens, e às vezes fazem uma vida toda". (O homem em revolta - Albert Camus)
Se olharmos um pouco nosso passado a partir de um ponto de vista histórico, quantos entre nós, podem sinceramente dizer que nunca desejou afirmar a própria humanidade, de desenvolvê-la em todos os seus aspectos em uma ampla liberdade. Poucos. Pouquíssimos são os homens e mulheres de minha geração que não sonharam com um mundo diferente, mais justo.
Entretanto, frequentemente, por pura curiosidade ou circunstâncias, somente alguns decidiram lançar-se na luta, sacrificando a própria vida.
A minha história pessoal é notoriamente bastante conhecida para voltar de novo sobre as relações da escolha que me levou à luta armada. Apenas sei que éramos milhares, e que alguns morreram, outros estão presos, e muito exilados.
Sabíamos que podia acabar assim. Quantos foram os exemplos de revolução que faliram e que a história já nos havia revelado? Ainda assim, recomeçamos, erramos e até perdemos. Não tudo! Os sonhos continuam!
Muitas conquistas sociais que hoje os italianos estão usufruindo foram conquistadas graças ao sangue derramado por esses companheiros da utopia. Eu sou fruto desses anos 70, assim como muitos outros aqui no Brasil, inclusive muitos companheiros que hoje são responsáveis pelos destinos do povo brasileiro. Eu na verdade não perdi nada, porque não lutei por algo que podia levar comigo. Mas agora, detido aqui no Brasil não posso aceitar a humilhação de ser tratado de criminoso comum.
Por isso, frente à surpreendente obstinação de alguns ministros do STF que não querem ver o que era realmente a Itália dos anos 70, que me negam a intenção de meus atos; que fecharam os olhos frente à total falta de provas técnicas de minha culpabilidade referente aos quatro homicídios a mim atribuídos; não reconhecem a revelia do meu julgamento; a prescrição e quem sabem qual outro impedimento à extradição.
Além de tudo, é surpreendente e absurdo, que a Itália tenha me condenado por ativismo político e no Brasil alguns poucos teimam em me extraditar com base em envolvimento em crime comum. É um absurdo, principalmente por ter recebido do Governo Brasileiro a condição de refugiado, decisão à qual serei eternamente grato.
E frente ao fato das enormes dificuldades de ganhar essa batalha contra o poderoso governo italiano, o qual usou de todos os argumentos, ferramentas e armas, não me resta outra alternativa a não ser desde agora entrar em "GREVE DE FOME TOTAL", com o objetivo de que me sejam concedidos os direitos estabelecidos no estatuto do refugiado e preso político. Espero com isso impedir, num último ato de desespero, esta extradição, que para mim equivale a uma pena de morte.
Sempre lutei pela vida, mas se é para morrer, eu estou pronto, mas, nunca pela mão dos meus carrascos. Aqui neste país, no Brasil, continuarei minha luta até o fim, e, embora cansado, jamais vou desistir de lutar pela verdade. A verdade que alguns insistem em não querer ver, e este é o pior dos cegos, aquele que não quer ver.
Findo esta carta, agradecendo aos companheiros que desde o início da minha luta jamais me abandonaram e da mesma forma agradeço àqueles que chegaram de última hora, mas, que têm a mesma importância daqueles que estão ao meu lado desde o princípio de tudo. A vocês os meus sinceros agradecimentos. E como última sugestão eu recomendo que vocês continuem lutando pelos seus ideais, pelas suas convicções. Vale a pena!
Espero que o legado daqueles que tombaram no front da batalha não fique em vão. Podemos até perder uma batalha, mas tenho convicção de que a vitória nesta guerra está reservada aos que lutam pela generosa causa da justiça e da liberdade.
Entrego minha vida nas mãos de Vossa Excelência e do Povo Brasileiro.
Brasília, 13 de novembro de 2009
Cesare Battisti
http://cesarelivre.org/node/183

Carta em solidariedade a Cesare Battisti, por uma decisão justa e soberana do Estado brasileiro: a sua libertação
Dezembro de 2008
Vimos, em nome de brasileiros das mais diversas cores ideológicas, manifestar solidariedade ao escritor Cesare Battisti, cidadão italiano mantido preso pela Polícia Federal em Brasília desde março de 2007, acusado de crimes que nega ter cometido, com motivação política, ocorridos em seu país, na década de 1970 -- época em que o mundo estava dividido em dois pólos ideologicamente antagônicos e aconteciam conflitos em ampla escala, nas diversas nações.
Cabe salientar o quanto o episódio é inoportuno, num momento em que o Brasil desfruta de invejável liberdade, começa a pagar suas dívidas sociais e desenvolve esforços para ser reconhecido pelos organismos internacionais como uma nação capaz de assumir responsabilidades maiores na condução dos destinos da humanidade.
Neste sentido, é imperativo sermos vistos como um país que não só respeita os direitos dos seus próprios cidadãos, como apóia os estrangeiros vítimas de perseguições políticas em seus países de origem. A concessão de refúgio humanitário, nesses casos, é uma nobre tradição brasileira da qual não deveremos jamais abrir mão.
Cesare Battisti já sofreu demais. Merece viver em liberdade, com sua família, exercendo o ofício em que tanto se destacou. Merece a hospitalidade dos brasileiros cordiais (torçamos para que eles ainda existam e se manifestem!).
Não é só Cesare que está sendo posto à prova. Nós também: nossos sentimentos humanitários, nosso espírito de justiça, nossa consciência solidária.
Seria motivo de imensa vergonha para nós não oferecermos a um idealista injustiçado condições análogas às que propiciamos a ladrões como Ronald Biggs e ditadores com Alfredo Stroessner.
NOSSA LUTA NÃO É SÓ POR CESARE. É TAMBÉM POR NOSSA DIGNIDADE E ORGULHO NACIONAL.
VENCEREMOS!

Carta de Anita Prestes (filha de Olga Benário) pedindo a Lula que não entregue Battisti


Exmo. Sr. Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva.
Na qualidade de filha de Olga Benário Prestes, extraditada pelo Governo Vargas para a Alemanha nazista, para ser sacrificada numa câmera de gás, sinto-me no dever de subscrever a carta escrita pelo
Sr. Carlos Lungarzo da Anistia Internacional (em anexo*), na certeza de que seu compromisso com a defesa dos direitos humanos não permitirá que seja cometido pelo Brasil o crime de entregar Cesare Battisti a um destino semelhante ao vivido por minha mãe e minha família.
Atenciosamente,
Anita Leocádia Prestes
http://cesarelivre.org/node/196

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novembro 17, 2009

ESTADO, GOVERNO E SOCIEDADE - NORBERTO BOBBIO - resumo de parte do capítulo III

5. Estado e Direito

Os elementos constitutivos do Estado

Deseja-se iniciar a reflexão e o fichamento desta parte do livro do ilustre filósofo político, historiador do pensamento político e senador vitalício italiano Norberto Bobbio, com o contraponto do pensamento de outro grande pensador, Pierre-Joseph Proudhon, marcando desde já uma postura de questionamento e crítica diante do estabelecido como certo, legal e normal. É verdade que o texto de Proudhon desconstrói o pensamento que ratifica o Estado e ou corrobora a idéia de Estado como um instrumento de organização e ordenamento da sociedade, mas é mister que se faça comparações para que assim as conclusões estejam mais subsidiadas e encorpadas num pensamento fundamentado numa visão plurilateral, dialética, e não unilateral, como sóe acontecer.

PIERRE-JOSEPH PROUDHON: SER GOVERNADO É...
“Ser governado é: ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legiferado, regulamentado, depositado, doutrinado, instituído, controlado, avaliado, apreciado, censurado, comandado por outros que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude.
Ser governado é: ser em cada operação, em cada transação, em cada movimento, notado, registrado, arrolado, tarifado, timbrado, medido, taxado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, estorvado, emendado, endireitado, corrigido.
É, sob pretexto de utilidade pública, e em nome do interesse geral: ser pedido emprestado, adestrado, espoliado, explorado, monopolizado, concussionado, pressionado, mistificado, roubado;
Depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa: reprimido, corrigido, vilipendiado, vexado, perseguido, injuriado, espancado, desarmado, estrangulado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, para não faltar nada, ridicularizado, zombado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis sua justiça, eis sua moral!
E dizer que há entre nós democratas que pretendem que o governo prevaleça; socialistas que sustentam esta ignomínia em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade; proletários que admitem sua candidatura à presidência! Hipocrisia!...”
PROUDHON, Pierre-Joseph. A propriedade é um roubo. L&PM Pocket. Porto Alegre. 2001. 172p. (p. 114-115). [15 de março de 2006]


“Desde quando do problema do Estado passaram a tomar conta os juristas, o Estado tem sido definido através de três elementos constitutivos: o povo, o território e a soberania”. Bobbio cita MORTATI (1969, p.23): o Estado é “um ordenamento jurídico destinado a exercer um poder soberano sobre um dado território, ao qual estão necessariamente subordinados os sujeitos a ele pertencentes”. Para Kelsen o poder soberano”é o poder de criar e aplicar direito,” recorrendo inclusive à força. O território é o espaço de atuação do Estado, em seus limites e fronteiras dá-se o poder soberano. Para Weber
não é possível definir uma associação política — inclusive o "Estado" — assinalando os fins da "ação da associação" [...] não existiu nenhum fim que ocasionalmente não haja sido perseguido pelas associações políticas; e não houve nenhum [...] que todas essas associações tenham perseguido. Só se pode definir, por isso, o caráter político de uma associação pelo meio [...] que sem ser-lhe exclusivo é certamente específico e para a sua essência indispensável: a coação física.

Kelsen, com sua idéia de que o Estado é uma técnica de ordenamento social encontra eco em Montesquieu, numa passagem clássica do Espírito das leis, onde ele, engrandecendo a nação que tem por objetivo a liberdade política, a Inglaterra, diz que “embora todos os Estados possuam em geral o mesmo fim, que é o de se conservar, cada Estado é levado a desejar um em particular” e exemplifica: “a expansão era o fim de Roma; a guerra o dos espartanos; a religião, o das leis judaicas”...
Bobbio diz que a existência do Estado prescinde de um território sobre o qual se tenha tomado tal poder que se possa estar ali sempre deliberando e comandando aqueles que, efetivamente, obedecem. E neste ponto lembra-se Thoreau ( 1995, p. 20) quando diz
A maioria dos homens serve ao Estado dessa maneira, não como homens de fato, mas como máquinas, com seus corpos . São o exército permanente, os membros da milícia, os carcereiros, os policiais, os posse comitatus1, etc. Na maioria dos casos, não há livre exercício nem do raciocínio nem do senso moral; eles se colocam porém ao nível da árvore, da terra, da pedra; talvez se possam manufaturar homens de madeira que sirvam a tal propósito de modo igualmente satisfatório.
Há limites, porém. Kelsen vê que além do limite espacial (território) e pessoal (povo) existe o limite de validade temporal e o de validade material, ou seja , o primeiro diz respeito ao tempo de vigência da lei desde sua emanação até sua ab-rogação e o segundo diz respeito
a) “matérias não passíveis de serem submetidas a uma regulamentação qualquer (...) e b) ”matérias que podem ser reconhecidas como indisponíveis pelo próprio ordenamento, como acontece em todos aqueles ordenamentos em que está garantida a proteção de alguns espaços de liberdade, representados pelos direitos civis(...)(p.95)
Novamente aqui lembra-se o filósofo norte-americano, Thoreau, que questiona:
Deve o cidadão, mesmo por um momento, ou em caso extremo, abdicar de sua consciência em favor do legislador? Então para que serve a consciência do indivíduo? Penso que devemos ser homens, em primeiro lugar, e só depois súditos. (p. 19)



O governo das leis

“É melhor o governo das leis ou o governo dos homens?” (p.93/4) Assim se arrasta o problema da relação entre direito e poder desde a Antiguidade Clássica, onde Platão e Aristóteles já colocavam o problema onde a paixão – mister da alma humana, não deveria existir na lei e mais, que os governantes deveriam ser súditos e escravos da lei e não ela súdita dos governantes ou privada de sua autoridade, para que assim as cidades pudessem prosperar na ordem. Essa idéia sobre a supremacia da lei estar no fato de que ela não se curva às paixões (Aristóteles) vai conduzi-la no decorrer da história a uma identificação com a voz da razão, associando sua frieza e imparcialidade à racionalidade. Durante o feudalismo, imperava a idéia de subordinação do príncipe à lei e na tradição jurídica inglesa o governo da lei é o fundamento do Estado de Direito.
Impõe-se então outra questão: “Já que as leis são geralmente postas por quem detém o poder, de onde vêm as leis a que deveria obedecer o próprio governante?”(p.96). Dois caminhos foram abertos a partir das respostas dadas, um diz respeito às leis naturais, derivadas da própria natureza do homem vivendo em sociedade e/ou “as leis cuja força vinculatória deriva do fato de estarem radicadas numa tradição”, leis “não escritas”, como aquelas que obrigam Sócrates a não fugir da prisão para escapar da morte, inclusive porque Sócrates acreditava que poderia questionar as leis mas não deveria desobedecê-las. O outro caminho indica um bom legislador, confeccionador da lei, “que deu a seu povo uma constituição (...)” (p.97). Os dois caminhos se fizeram presentes ao longo da história do pensamento político

Os dirigentes que, embora sendo os artífices das leis positivas, como as leis naturais que na tradição do pensamento medieval são também as leis de Deus (...) ou as leis do país, a common Law dos legistas ingleses, que é considerada uma lei da razão, á qual os próprios soberanos estão submetidos (p.97).

Rousseau é quem vai resgatar a idéia de grande legislador, “homem extraordinário" cuja função é excepcional porque “nada tem em comum com a autoridade humana”. Segundo Bobbio, todas as primeiras constituições escritas (...) nascem sob o signo do reino da razão, interpretando as leis da natureza e as transformando em lei positiva com uma constituição saída (...) da mente dos sábios (p.97). Diferente de Rousseau, Thoreau ( 1995, p. 45) diz:

(...) Há oradores, políticos e homens eloqüentes aos milhares; mas não abriu ainda a boca para falar o relator que seja capaz de resolver as mui debatidas questões do dia. Amamos a eloqüência pela eloqüência e não por qualquer verdade que possa exprimir, ou qualquer heroísmo que possa inspirar (...) Se fôssemos deixados inteiramente à mercê da palavrosa sabedoria dos legisladores do Congresso para guiar-nos, sem que ela fosse corrigida pela oportuna experiência e pelas eficazes reclamações do povo, os Estados Unidos não conseguiriam manter por muito tempo o posto que ocupam entre as nações.

A julgar pela conduta dos nossos legisladores, pelos escândalos contínuos do nosso Senado e Congresso como um todo e outros escândalos internacionais, o pensador naturalista e ecologista, fundador da desobediência civil, que influenciou Gandhi e Martin Luther King estava, por assim dizer, mais com os pés no chão do que aquele que foi, talvez, porventura, um dos seus mais diletos inspiradores intelectuais. Verdadeiramente os considerados “sábios” muitas vezes são mesmo é pseudo-sábios, legislando em causa própria, defendendo os interesses das classes dominantes e embargando, protelando, adiando, anulando, sucateando, vilipendiando sempre que podem os direitos do povo. No seu texto AOS DOUTORES DA LEI, a professora Maria de Lourdes da Silva, discente deste Curso de Direito e licenciada em Filosofia por esta Instituição diz o seguinte:

Os doutores da Lei julgam-se os senhores do mundo, têm-se na conta de sabidos sem, no entanto, serem sábios; julgam-se quiçá sacerdotes do Direito e da Jurisprudência, mas trancafiam inocentes em celas imundas e prisões bárbaras e desprezam os pobres enquanto protegem seus pares muitas vezes corruptos e refestelam-se na luxúria e na soberba de suas ações insanas e cruéis! Alimentam seus egos com a prepotência e a presunção das mordomias que asseguraram a si mesmos, enquanto humilham e subjugam os indefesos. Muitos são fascistas ou nazistas, verdadeiros tiranos travestidos em roupagens democráticas, togados, ostentando uma oratória repleta de artigos da Constituição... Lobos vorazes em pele de cordeiro! Perseguidores implacáveis de seus desafetos, poucos imaginam a fera que se esconde embaixo de ternos caros e vestidos elegantes! Nemo censetur ignorare legem, “a ninguém é permitido ignorar a lei” mas são os próprios doutos que a desconhecem primeiro, cada vez que deixam nos presídios, cidadãos que, por desespero da vida, cometeram pequenos delitos como roubar uma lata de margarina ou pães de uma padaria, enquanto céleres libertam aqueles que se locupletam do erário público para construir suas mansões e seus castelos, a troco de propinas e favores.2

Os limites internos

A questão aqui se inicia com a discussão sobre o soberano estar sujeito a quais leis, já que “ninguém pode dar leis a si mesmo”,(primeiro limite) embora estejam submetidos a leis naturais e divinas, sem poder transgredi-las para não tornar-se culpado de lesa-majestade divina . Bobbio cita Bodin3 e outros autores absolutistas que disseram que os reis não estão submetidos apenas às leis naturais e divinas, mas também a leis positivas e consuetudinárias como a lei de sucessão do trono. “O rei que viola as leis naturais e divinas torna-se um tirano ex parte exercitii; o rei que viola as normas fundamentais é um usurpador, um tirano ex defectu tituli”(p. 98) (segundo limite). Distinguir monarquia régia de monarquia despótica é base para o terceiro limite, quando se percebe que o poder do rei não pode invadir o âmbito do direito privado , salvo motivada e justificada necessidade.
Está posto então um debate entre fautores, promotores da monarquia absoluta, como Bodin e Hobbes e os defensores da monarquia limitada ou moderada, como os escritores franceses “que apóiam as resistências dos estamentos contra o processo de concentração e centralização de todo o poder estatal nas mãos do rei”; como os ingleses, defensores da monarquia constitucional.

Para uns e para outros o poder do rei deve ser limitado não apenas pela existência de leis superiores que ninguém põe em discussão mas também pela existência de centros de poder legítimos de que são portadores as ordens ou os estados – o clero, a nobreza, as cidades -, com seus órgãos colegiados que pretendem ter direito de deliberação em determinadas matérias, como por exemplo a imposição fiscal.(p. 99)

Ao concluir sobre os limites internos, Bobbio faz menção ao “constitucionalismo”, teoria e prática dos limites do poder. Ele diz que o constitucionalismo encontra respaldo nas constituições que limitam formal e materialmente ao poder político, reconhecendo e protegendo os direitos fundamentais, erguerdo-se contra a pretensão e a presunção do rei de subjugar e submeter indivíduos e grupos à sua lei.
Marilena Chaui (2003, p 366) diz: “Os governados não podem depor nem matar o tirano, mas podem resistir a ele, buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade, forçando-o a abdicar do poder. “ Segundo ela quando o direito subjetivo natural é violado, o governo se torna ilegítimo, o acordo de submissão deixa de ser válido e o rei deve abdicar do poder.

Os limites externos

O caso da invasão do Afeganistão pelos EUA, o caso da invasão do Iraque, com a prisão, “julgamento” e morte de seu governante Saddan Hussein, o caso do bloqueio à Cuba pelos EUA, são exemplos, compreende-se, em que houve limites externos colocados por outros Estados, no caso o Estado imperialista mais rico do mundo, sobre países comunistas ou “não-alinhados”, detentores de grande produção de petróleo, um dos minérios mais importantes da história contemporânea.

“Nenhum Estado está só. Todo Estado existe ao lado de outros Estados numa sociedade de Estados” (...) A soberania tem duas faces, uma voltada para o interior, outra para o exterior. Correspondentemente vai ao encontro de dois tipos de limites: os que derivam das relações entre governantes e governados e os que derivam das relações entre os Estados, e são os limites externos”(p.101)

Como nosso exemplo bem mostra, para Bobbio “quanto mais um Estado é forte e portanto sem limites no interior, mais é forte e portanto com menores limites no exterior”.(p.101) Se o Estado estiver vinculado a seus súditos, mais independente estará de outros Estados.

Enquanto o processo de dissolução do império representa uma redução de poder em favor de novos Estados, o processo de formação de um Estado maior a partir da união de Estados pequenos representa um reforço de poder do primeiro sobre os segundos: estes perdem em independência interna aquilo que ganham em força no exterior unindo-se a outros. (...) Somente através da união federativa a república, que durante séculos após o fim da república romana foi considerada uma forma de governo adequada aos pequenos Estados, pode tornar-se a forma de governo de um grande Estado como os Estados Unidos da América. (p.103)

E os Estados Unidos da América são, no mundo, um dos grandes Estados que impõem diuturnamente seus limites a todos os que possuem riquezas e bens que são dos seus interesses. Como diz Annie Leonard,em História das coisas:

“(...) Comecemos pelo governo. Meus amigos dizem que eu deveria usar um tanque para simbolizar o governo (e isso é uma realidade em muitos países) e cada vez também mais o nosso, afinal, mais de 50% dos nossos impostos vão para os militares. (...) Aonde eu vivo, nos Estados Unidos, resta-nos menos de 4% de nossa floresta original, 40% dos cursos de água estão impróprios para consumo , o nosso problema não é apenas estarmos usando demasiados recursos, mas o fato de estarmos utilizando mais do que a nossa parte. Temos 5% da população mundial, mas usamos 30% dos recursos mundiais. Se todos consumissem ao ritmo dos Estados Unidos, precisaríamos de três a cinco planetas e sabe uma coisa? Só temos um, então a resposta do meu país a essa limitação é simplesmente ir tomar dos outros4


Para Bobbio se esta tendência continuar, de formação de Estados ou constelações de Estados, como ALCA, União Européia, MERCOSUL, aumentará o poder de países como Estados Unidos e Inglaterra, que absorvirão Estados satélites e terão diminuídos seus limites esternos de superestado. “No caso em que se chegasse à formação do Estado universal, este teria apenas limites internos e não mais externos.

Pede-se licença concluir com palavras do próprio Bobbio em outro livro IGUALDADE E LIBERDADE (1997, P. 94):

A garantia dos Direitos do homem contra a violação perpetrada pelo próprio Estado que deveria protegê-los é uma resposta, em nível mais alto, à eterna pergunta: Quis custodiet custodia? (QUEM GUARDARÁ OS GUARDIÕES? grifo nosso)Toda nova tentativa de resposta a esta pergunta, ainda que imperfeita e incompleta, é – na medida em que propõe novas formas de controle e de poder – uma resposta a uma demanda de liberdade.

Maria de Lourdes da Silva, Especialista e Política educacional, licenciada em Filosofia e Acadêmica de Direito.


NOTAS


1 – Faculdade que a lei inglesa e norte americana concedia aos juízes de paz e aos xerifes de recrutarem as pessoas que julgassem necessárias para auxiliá-los na perseguição e aprisionamento de criminosos e traidores.
2– O texto foi colocado como citação porque o pensamento não pertence ao grupo, mas trata-se de um escrito publicado parcialmente no seguinte endereço virtual: http://www.agorapindorama.blogspot.com/ da acadêmica, que também é licenciada em Filosofia e especialista em Política e Planejamento Educacionais, pela UESC.
3 – ( nota nossa) http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Bodin acessado em 06 de novembro de 2009 - Jean Bodin (Angers, 1530 — Laon, 1596) foi um jurista francês, membro do Parlamento de Paris e professor de Direito em Toulouse. Ele é considerado por muitos o pai da Ciência Política devido a sua teoria sobre soberania. Baseou-se nesta mesma teoria para afirmar a legitimação do poder do homem sobre a mulher e da monarquia sobre a gerontocracia.
Ele escreveu diversos livros, mas a Inquisição condenou a muitos deles porque o autor demonstrou simpatia pelas teorias calvinistas. Estes calvinistas, chamados Huguenotes na França, eram processados pela Igreja católica assim como outras seitas protestantes ou reformadores cristãos o eram em outros países católicos.
Seus livros dividiram opiniões: alguns escritores franceses os admiravam, enquanto Francis Hutchinson foi seu detrator, criticando sua metodologia. As obras escritas por Bodin faziam diversas alusões a julgamentos de bruxos e o procedimento que deveria ser seguido, dando-lhe a reputação de um homem sanguinário.
4 - Licenciado Creative Commons 3.0 Written by - Annie Leonard Produced by - Free Range Studios Executive Producers - Christopher Herrera, Tides Foundation, Funders Workgroup for Sustainable Production and Consumption. Créditos da versão brasileira: Adaptação do texto - Denise Zepter Locução - Nina Garcia Direção e edição - Fábio Gavi Estúdios - Gavi New Track - SP
5 –BOBBIO, Norberto. Liberdade e Igualdade. tradução Nelson Coutinho 2 ed.Rio de janeiro: Ediouro, 1997, 96p.


REFERÊNCIAS



BOBBIO, Norberto. Estado, governo, Sociedade; tradução Marco Aurélio Nogueira. Brasília: Editora Paz e Terra, 7ª edição, 1995.

------------. Liberdade e Igualdade. tradução Nelson Coutinho 2 ed.Rio de janeiro: Ediouro, 1997, 96p.


CHAUI, Marilena, Convite à Filosofia. 13 ed, São Paulo: editora Ática, 2003 424 p


http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Bodin

LEONARD, Annie, História das coisas video Licenciado Creative Commons 3.0 Written by - Annie Leonard Produced by - Free Range Studios Executive Producers - Christopher Herrera, Tides Foundation, Funders Workgroup for Sustainable Production and Consumption. Créditos da versão brasileira: Adaptação do texto - Denise Zepter Locução - Nina Garcia Direção e edição - Fábio Gavi Estúdios - Gavi New Track – SP

PROUDHON, Pierre-Joseph. A propriedade é um roubo. L&PM Pocket. Porto Alegre. 2001. 172p. (p. 114-115). [15 de março de 2006]

SILVA, Maria de Lourdes da, http://www.agorapindorama.blogspot.com

THOREAU, Henry David. A desobediência Civil. Seleção, tradução, prefácio e notas José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, 130p